Em 25 de março de 2014, foi aprovado na Câmara dos Deputados o projeto de lei intitulado Marco Civil da Internet. O projeto segue para o Senado, superando o principal entrave político, já que foi alvo de resistências na câmara baixa do parlamento brasileiro. O caminho, agora, provavelmente será mais suave, sendo aprovado sem grande (ou nenhuma) alteração, já que é da pauta prioritária de interesses da Presidência da República, que tem maioria também no Senado.
Para a íntegra do texto:http://estaticog1.globo.com/2014/03/25/marcocivilInternet-textofinalcamara-25mar2014.pdf. Acesso em 25 mar. 2014.
Há sim o que se celebrar. Trata-se de algo que tramitava há cinco anos em nosso legislativo, tendo sido fruto de amplo debate com a sociedade civil antes de sua proposição e durante o processo legislativo. E, sua maioria, na própria Internet.
A inovação no tocante à expressão da democracia participativa, porém, não esconde pontos cruciais de seu texto.
Inicialmente, salienta-se que o Marco Civil sempre foi apresentado (pra não dizer vendido) como uma verdadeira “Constituição da Internet”. Enuncia princípios que expressam os valores que devem nortear o desenvolvimento da Internet brasileira.
Seu principal slogan, o tríplice vértice fundante do “bem” na Internet nacional, revela as linhas mestras do Marco: neutralidade, privacidade e liberdade de expressão.
A neutralidade da rede acabou por atrasar muito os debates nos últimos tempos. Mas ainda que o tema pareça estritamente técnico, diz respeito suscintamente ao poder dos detentores da estrutura física da rede de controlar (melhor, discriminar) o que chega às extremidades das “autoestradas da informação”.
Na prática, se autorizado o fim da neutralidade, o usuário que consumisse mais banda (mais informação) assistindo um vídeo, por exemplo, poderia ser cobrado a mais por isso. Já imaginou o quanto se cobraria em período eleitoral de um cidadão ávido por vídeos no youtube para escolher seu candidato? E de um usuário da classe C/D que faz curso superior em sistema de Ensino à Distância para buscar uma suada promoção na empresa onde trabalha? Eis a razão por muitos se levantarem e a conclusão, por ora, é que a neutralidade é um princípio, mas suas exceções serão “regulamentadas” posteriormente pelo executivo. (O que parece ser um golaço de empate aos 45 do segundo tempo dos provedores de aplicação (prestadores de serviços “online”, que vão desde conteúdo a rede social, por exemplo), contra as chamadas e as “teles” (operadoras dos backbones ou estruturas físicas da Rede), levando pra prorrogação um jogo em que estas já cantavam vitória, e que agora entram no tempo extra com aquele ar cabisbaixo de empate com gosto de derrota (por ora…).)
A privacidade também é um pilar crucial no Marco Civil. Impulsionado pela reação às denúncias de violação maciça de dados pessoais por parte da National Security Agency, do governo dos Estados Unidos, o executivo brasileiro empurrou a aprovação do texto legal com regras que vedam, em princípio, o registro de dados de navegação dos usuários, salvo algumas exceções.
Nada mal quando (aparentemente) até as informações pessoais de chefes de Estado estão sendo devassadas (imagine as nossas, né?).
Por fim, a liberdade de expressão.
O tema suscitou mais debate no passado, mas seu corolário principal (ou o que é vendido) é o sistema de (ir)responsabilidade do provedor de aplicações por conteúdo gerado por terceiro. O tal “princípio da inimputabilidade da rede”, como denominou o relator do projeto, Deputado Alessandro Molon (PT-RJ).
Dito de forma bem simples, um provedor de aplicações somente poderá vir a ser eventualmente responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo inserido por terceiro se for “notificado” judicialmente, em ordem judicial que contenha expressamente o local virtual do cumprimento da obrigação (conhecido por URL – Universal ResourceLocater) sob pena de nulidade (quantos “…mente”!). Exceção fica por conta da “vingança pornográfica” (o popular “caiu na net”), ocasião em que o provedor deverá retirar o conteúdo se notificado extrajudicialmente. Indicando-se a URL, claro!
Tudo isso para garantir a liberdade de expressão, evidente.
Ao longo desses anos de estudo, tenho notado a cada dia que passa que parte minoritária da doutrina jurídica se preocupa com aspectos existenciais das situações jurídicas subjetivas.
Em termos menos pomposos, no primeiros períodos da faculdade é possível dividir a “galera da grana” e a “galera da cana”. A maioria se ocupa da defesa dos direitos patrimoniais.
Tal fato não é diferente na elaboração das leis.
Da observação destes cinco anos de discussões sobre o Marco Civil o que mais me chamou a atenção foi que os embates dentro e fora do Congresso se davam entre setores da sociedade civil organizada no mais das vezes preocupados com seus próprios interesses monetários.
Daí talvez se explique a exclusão dos direitos autorais e conexos do sistema da “inimputabilidade da rede”, por exemplo.
Outra coisa que vi também é que a tal democracia participativa virtual, em que tanto acreditei e ainda acredito, acabou por ceder espaço (ficando as vezes espremida, coitada!) para métodos bem ortodoxos de se fazer política, como a clara atuação de grupos de interesses (nome chique pro lobby) em prol dos provedores de aplicações para excluir seus custos de retirar conteúdo sob pena de responsabilização solidária, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça.
Até concordo que o sistema pode ser bom para defender blogueiro independente, mas na dita web 2.0 (quase 3.0 a essa altura), em que nossos dados pessoais (nosso “corpo eletrônico”) são apenas mais uma commodity no jogo de bilhões de dólares (cito a compra do whatsapp pelo facebook como exemplo, mas sei que só isto já torna o texto um candidato a papiro no efêmero mundo das megafusões de empresas “.com”) é de se repensar se o intuito é “proteger a liberdade de expressão e impedir a censura” ou “garantir os lucros e falar que isso é “para sua segurança” ou “para sua liberdade de expressão”. Um “sorria, você (não tem opção) e está sendo filmado.”
Nesse jogo de ressignificações semânticas, de acabar com a pobreza chamando pobre de carente, a lei nesse ponto ignora totalmente a existência de um Código de Defesa do Consumidor, que vinha servindo de supedâneo para decisões judiciais em sentido diverso.
Além disso, afirma que o usuário pode se valer dos Juizados Especiais Cíveis para demandar a retirada de conteúdo (jura?). Mas não explica se altera o art. 3º e o 275, II do CPC, para determinar ser competente o JEC independente do valor da causa nas demandas entre usuário e provedor de aplicações.
Dessa maneira, mais deixa dúvidas do que certezas para o adolescente vítima de cyberbullying, do professor vítima de achincalhamento público, para a vítima de racismo, homofobia, antissemitismo, e tantos outros “exercícios da liberdade de expressão” que a lei simplesmente ignora e joga na vala comum da“inimputabilidade” dos grandes provedores de aplicações da Internet.
Portanto, enquanto todos falam que o judiciário não dá conta de resolver os problemas ou demora demais para concretizar a solução, a lei judicializa os conflitos de interesses na Internet.
Mesmo assim, todo crítico tem fama de chato e num ambiente de opiniões prontas refletir e questionar não merece “likes”.
Por isso, torço sinceramente para dobrar minha língua e ver o Brasil liderar uma verdadeira revolução internacional em prol da tutela dos direitos humanos no século XXI.
Como se ouve falar que disse um velho presidente de uma vetusta ditadura militar brasileira (celebrada por uns quinhentos e poucos nos últimos dias, é verdade) : “Vai abrir para a democracia, senão eu mando prender!”
Que venha o Marco Civil da Internet no Brasil!
João Victor é Mestre em direito Civil pela UERJ e doutorando em Direito Civil pela USP. Pesquisador especializado em Direito das Tecnologias da Informação e Comunicação e Professor da UFU-MG.